25.1.16

Shadowed Light

Fazia seis semanas desde que Aaron acordara e por isso, já não tinha a necessidade de o vigiar a maior parte do dia. Ele estava independente e solto de movimentos. Cada um de nós tinha uma tarefa no dia de hoje.
Escolhia os cogumelos castanhos, mesmo ao lado de um enorme vermelho, sarapintado de branco, que cativava a minha visão com a sua cor maldosa e enganosa.
Tinha a intenção de fazer um guisado para o almoço e por isso fora apanhar deliciosos fungos, enquanto Aaron caçava um animal para juntar ao prato. Não acreditava que ele fosse capaz de encontrar algo maior que coelhos. Os veados e animais de maior porte tinha fugido e demorariam a voltar para a floresta. No entanto, apesar da terrível catástrofe que se abatera, os seres vivos voltavam pouco a pouco e povoam novamente este local magnífico.
Caminhava para casa, em direção ao sol nascente quando vislumbrei uma sombra pela minha visão periférica. Foi uma fração de segundo, mas tinha a certeza de que a vira. Vasculhei em meu redor, à escuta também, em busca de um restolhar de folhas, por mais ínfimo que fôsse. Só ouvia os pássaros a chilrar e zumbidos de pequenos insetos à minha volta. Nada de sombras, nada que se parecesse humano, nada de estranho.
Prossegui o meu caminho, atenta a cada espaço, árvore, arbusto, buraco, tronco, ramo. Nada estava fora do lugar e no entanto, algo no ar me fazia notar a violação que aquele vulto provocara no equilíbrio e harmonia da floresta.
Apressei o passo, dando por mim a correr de quando em vez. Tentei respirar fundo e acalmar o meu coração que batia fortemente no meu peito apertado. Pretendia convencer-me de que estava a alucinar, de que ao fim de meses a ser perseguida, esta era apenas uma partida da minha mente traumatizada. Ah como queria que isso se tornasse realidade e no fundo sabia que não era possível.
Localizei a casa a uns quantos metros de mim e por isso abrandei. Olhei por cima do ombro e parei, subitamente, para observar.
Do meu lado esquerdo vinha um som confortante e familiar. Fitava o sentido do som, até aparecer a origem do mesmo. No meu peito, um fenómeno estranho tomou lugar, como se o meu músculo motor tivesse sido comprimido repentinamente e quando solto, fez explodir felicidade dentro de mim.
O sorriso de Aaron tornou-se o centro de toda a minha visão.

-Consegui caçar dois coelhos, espero que chegue.
-Eu apanhei uns quantos cogumelos e ainda umas bagas silvestres. Dá para algumas refeições - apressei-me a terminar a frase, percorri a restante distância que nos separava e peguei-lhe no braço em direção a casa.

Ele franziu-me o sobrolho, mas isso não me impediu de continuar a puxá-lo. Subimos as escadas o melhor e mais rapidamente que conseguimos, enquanto carregávamos os nossos alimentos e assim que senti chão debaixo dos meus pés, precipitei-me para o quarto, onde tinha o bastão. Empunhei-o, atenta à perturbação existente no ar.

-Que se passa, Kayleigh?

Pedi-lhe que se mantivesse em silêncio para me concentrar. Dei por ele a pousar tudo na bancada da cozinha e a observar-me preocupado.
Num segundo quase imperceptível, o que quer que tivesse sentido, esvaiu-se por completo. Senti alívio e desilusão por não ter sido rápida o suficiente a detetar o que quer estivesse errado. Suspirei pesadamente e deixei-me cair na cama, atordoada. Levei a mão à testa e inspirei fundo. A vibração dos passos de Aaron em direção a mim tornou-se mais forte, até ele parar mesmo em frente à minha face. Lia-lhe aflição na expressão dos olhos.

-Está tudo bem - assegurei-lhe. - Não passou de um falso alarme.
-Podes dizer o que quiseres, mas não acredito nessa mentira - rematou, enquanto se levantava e me beijava levemente a testa com os seus lábios de veludo. 

Peguei-lhe na mão e entrelacei os dedos nos dele. Apertei-os até sentir os nossos ossos esmagados uns contra os outros. Não queria que aquele toque terminasse. Uma única lágrima escorreu pela minha bochecha e sequei-a com as costas da minha mão livre. Não sabia o que se passava e só queria compreender o que fora que sentira de tão negro.
Ele puxou-me para cima e abraçou-me com força, as suas mãos na base das minhas costas e as minhas sobre os seus ombros. Não sei quanto tempo ficámos assim.

-Beija-me - murmurei-lhe.

Ele obedeceu tranquilamente e envolveu-me no seu corpo forte e seguro. Senti que podia estar dentro dele de tão perto que estávamos os dois.
Os lençóis ganharam forma debaixo de mim e deixei-me levar e guiar pelos seus membros que pareciam estar em todo o lado. Colei os meus lábios ao seu pescoço e percorri um troço até ao seu ombro. Ele estremeceu. Os seus dedos deslizavam na minha pele das costas, provocando pequenos e saborosos arrepios. O quarto fora invadido por magia.

***

Estava a colocar o guisado ao lume quando dei por mim a levar a mão ao ventre e afagá-lo. Já há uns dias que desconfiava, mas naquele momento tive a certeza. Uma catadupa de dúvidas choveram para cima de mim e senti as minhas pernas tremerem. Tinha de contar ao Aaron. Mas e se ele não aceitasse? E se achasse que não era um bom momento? E se...? E se...?
A sua voz arrancou-me dos meus pensamentos:

-Kayleigh...
-Diz-me.
-O que se passa?

Virei-me, após mexer o preparado e certificar-me de que fervia. Fui sentar-me junto a ele à mesa, onde ele dobrava roupa e momentos antes preparara a carne que agora cozia.
Olhei para as mãos e mexi-as descontroladamente. Ele pousou uma das suas enormes por cima das minhas para me acalmar. Peguei nela e levei-a à minha barriga. Olhei-o nos olhos.

-Vais ser pai - foi tudo o que consegui articular.

Os segundos seguintes foram talvez  os mais longos de toda a minha vida e tudo pareceu parar. A sua boca moveu-se vagarosamente e quase podia contar os batimentos cardíacos de ambos.

-Eu achei que fosse ter mais tempo... Eu pensei que ainda tivesse mais uns meses... Oh meu Deus.

A resposta que me dera não fora o que esperava e pareceu-me um murro no estômago. As lágrimas assomaram-se nos meus olhos.

-Aaron - a minha voz era frágil e trémula.
-Oh meu amor! - foi tudo o que me disse antes de desaparecer para o quarto e vasculhar algo debaixo da cama.

Voltou com o vestido turquesa que vira no mercado, o vestido turquesa que colocara ao pé da minha campa e que eu nunca me lembrara de ir buscar. Aparentemente ele tinha-o feito por mim, num qualquer dia que fora caçar, sem que eu desse por isso. Pousou-o na mesa e empurrou-o na minha direção. Pegou-me ao colo nos seus braços e pude senti-lo soluçar de comoção. 

-Eu vou ser pai! - gritou, olhando-me de cima a baixo - Vamos ter um bebé! És linda! És maravilhosa!

Levou a sua mão à minha barriga uma vez mais e sorriu-me tolamente, inclinando-se para me beijar.

6.10.15

Sweet Embrace

Distante, bem longe, do sítio onde se encontrava, alguém lhe acariciava o cabelo e sussurrava palavras doces no ouvido. Era o paraíso e ele lutava com tudo o que podia para alcançar a fonte dessa melodiosa voz, no entanto algo o impedia, fazendo-o voltar para a imensidão escura, que era a sua mente, perdido e sem rumo.
Sentiu um leve roçar de lábios na sua testa e uma frase que não lhe fez qualquer sentido, qualquer coisa com lado? Não era isso, não. La... LAGO!
Agarrou-se o mais que pôde a esse pedaço de lucidez, que sentiu a desfazer-se nas suas mãos vagarosa e penosamente.
Sentiu o conforto e o calor a abandoná-lo e não havia nada que pudesse fazer. Sentia-se inútil, impotente.


***


Despi-me e entrei na água. Estava uma temperatura agradável e bem precisava de um banho.
Já fizera algum tempo desde o dia em que carreguei Aaron desde o palácio por terras geladas até à floresta. Tinha construído uma modesta casa no topo de uma árvore com a ajuda do meu bastão. Escolhi uma zona que me pareceu acolhedora, que se localizasse perto do lago e que não tivesse ficado muito danificada pelo incêndio de há uns meses atrás. 
O tempo contribuiu para o florescer das plantas, arbustos e árvores, que tiveram uma oportunidade para renascer, com a minha ajuda, é claro. Admito que acelerei o processo ligeiramente. Era o meu dever reconstruir a preciosa casa de Aaron, depois do que lhe tinha obrigado a fazer por mim. Arrependia-me do que fizera, mas era a nossa única hipótese. 
Sei que não é desculpa, mas não o abandonei por um segundo que fosse. A traição doera tanto a mim como a ele, apesar do seu coração estar seco na altura.
Aaron estivera em coma durante várias semanas, talvez três meses e eu nunca o abandonei por um segundo. No momento em que ele cumpriu a promessa, eu voltei à vida, magicamente. Não sabia muito bem o motivo, mas acredito que mais uma vez a luz branca tenha sido a minha salvação. A minha alma voltou para o meu corpo e em meros segundos encontrava-me viva, com o coração a pulsar vigorosamente, com as bochechas e lábios rosados, para o encontrar a ele inerte e pálido. Pegara-lhe gentilmente na cabeça e com a minha magia e uma força qualquer sobrenatural, restitui-lhe a vida que tão egoistamente lhe roubara.
Demorou várias semanas a regressar à floresta e agora que aqui estava não pretendia abandoná-la. Não pretendia abandoná-lo.
Lavava o meu cabelo com um óleo especial de lavanda e fechava os olhos, perdida em pensamentos, aproveitando o sol quente matinal e a luxúria que era ter os meus fios de ouro limpos e com um toque suave a perfume. Mergulhei até tocar o fundo do lago de água cristalina e nadei entre os peixes por breves momentos, até voltar à superfície para recuperar o fôlego.
Várias espécies de pássaros tinham voltado ao seu habitat, agora que estava de novo a florir e cheio de vida. Os seus cantares eram melodiosos e enchiam-me de esperança e felicidade. Mal podia esperar pelo dia em Aaron acordasse. Só desejava poder ver de novo os seus lindos olhos. Um súbito terror fez o meu coração parar. E se ele não quisesse ver-me? E se ele me odiasse pelo que eu lhe fizera? E se ele não sentisse por mim, o mesmo que eu sentia por ele? Perguntas choveram em cima dos meus ombros como pedaços aguçados de vidro, cravando-se na pele e cortando tão fundo que alcançaram o meu coração. Algo mais tocava a pele dos meus ombros. Não eram estilhaços, nem perguntas, era algo suave, quente, indefinível. Voltei-me para trás e perdi a capacidade de inspirar ou expirar. 
Era um azul puro, límpido, cativante e sedutor. Estava tão abstraída na minha mente que nem dei por ele. Vivo, forte, apesar de ter estado tanto tempo inconsciente. Era impossível e no entanto, ali estava ele, com um sorriso maravilhoso nos lábios, que há pouco me beijaram os ombros.
Mal conseguia articular palavras e no entanto escaparam-me algumas das que pretendia:

-Preciso de ter pedir desculpa. Eu...

Ele não me deixou terminar. Acariciou a minha bochecha esquerda e selou os meus lábios com o seu polegar, inclinando-se para me beijar. Queria impedi-lo, queria dizer tudo o que deveria e não deveria ter-lhe feito, queria contar-lhe como me sentia, mas as palavras desfizeram-se como areia mesmo antes de tocarem a minha língua.
Os seus lábios quentes encontraram os meus e deixei-me levar, era mais forte que eu. Muito mais forte que a minha nula vontade de impedir o que estava a acontecer.
Ele rodeou a minha cintura com um dos seus braços fortes e puxou-me para ainda mais perto dele, como se os nossos corpos se pudessem unir num só. Era o que eu mais queria que acontecesse. Ser um com ele.
Agarrei-me ao seu pescoço enquanto ele percorria as minhas costas com a mão e afagava o meu cabelo molhado.

-Eu amo-te - sussurrou ele ofegante.

Eu olhei-o com profunda paixão e retribui as palavras tão sentidas que ele acabara de me confessar.

-Senti a tua falta - murmurei ao seu ouvido.

E de repente tudo à nossa volta se tornou supérfluo e insignificante. Só havia nós dois. 

A noite tornara-se fresca, mas acolhedora no conforto de nossa casa. Não havia mais nada no mundo que eu precisasse tanto como Aaron. Estava radiante e de certo modo incrédula. Fora a primeira vez que me tinha entregue a alguém de corpo e alma e não sentia vergonha nem arrependimento, apenas felicidade.
Estava na cozinha a preparar o jantar e Aaron sentou-se na mesa a olhar-me, após ter arrumado o quarto a seu gosto. Tinha-lhe pedido que não fizesse muitos esforços, mas ele não me ouviu.

-És a mulher mais bonita que eu alguma vez vi.

As palavras foram tão inesperadas que parei o que estava a fazer para o olhar. 
Aaron sorria-me doce e verdadeiramente, com um brilho nos olhos. Deixei o que estava a fazer e sentei-me no seu colo para o beijar.

-Gostei do efeito que as palavras tiveram - picou-me.
-Se não forem verdadeiras não as pronuncies - respondi-lhe, enquanto me levantava a rir e lhe tocava com o indicador no nariz. Ele pegou no meu braço e puxou-me de volta, prendendo-me no seu olhar.

-Nunca pronunciei algo tão verdadeiro.
-Tu também não és assim tão feio - encolhi os ombros e antes que me pudesse libertar, ele fez-me cócegas na barriga, enquanto me puxava para o seu corpo e me impedia de escapar. 
-Retira o que disseste - comandou-me em brincadeira. Muito a custo, ganhei a minha liberdade e voltei para os meus afazeres, deitando-lhe a língua de fora.

Jantámos calmamente, iluminados por velas e o luar que entrava pela janela. 
Fomos dormir, ao fim de vários intermináveis meses, finalmente juntos.
Eu sentia-me segura e confortável nos seus braços.